Marcada pelo que Nietzsche chamou de vontade de verdade, a história do pensamento ocidental tem como seu veio mais recôndito o socrático-platonismo. Da indelével marca deixada por esses dois pensadores, se segue toda uma tradição que orientou não apenas a atividade filosófica no ocidente, mas que, sobretudo, constituiu toda uma cultura em sua série de práticas de produção de conhecimento e valoração de mundo. A partir da erótica platônica, orientada para as alturas de uma ontologia supraceleste, o homem passou a ver em seu próprio corpo, constantemente crivado pelo baile caótico das sensações, como na própria natureza em seu constante processo de transformação, um caminho infecundo para a reflexão. É que os sentidos, quando capazes de suscitar a reflexão, assim o fazem por limitação ou pela contrariedade dos dados por eles apreendidos, sendo esse, talvez, o ponto de partida do postulado platônico:
A sensação que não convida à reflexão, lhe disse, é a que não provoca ao mesmo tempo a que lhe é oposta; se o faz, coloco-a entre as que convidam, porque, nessa hipótese, a sensação tanto se refere a si própria como a seu contrário, nada influindo nesses casos a distância. [...] Aqui temos, vamos dizer, três dedos: o mínimo, este outro e o do meio. [...] E com respeito à grandeza ou à pequenez dos dedos, o sentido da vista será suficiente para discerni-la, sendo indiferente encontrar-se qualquer deles no meio ou na extremidade? [...] Por amor da clareza, o entendimento é obrigado a ver, não confundidas, a grandeza e a pequenez, o contrário do que se deu na vista. [...] Desse jeito foi que estabelecemos a diferença entre o inteligível e o visível (PLATÃO, A República, Livro VII, 523c - 524c, p. 331-33).
O que é evidenciado por Platão nesse trecho é o estupor ao qual a razão é submetida quando experimenta, a partir dos dados ditos perceptivos, alguma contradição, posto que a matéria pode subsumir diversas qualidades, muitas vezes contrárias entre si, que se amalgamam ou que se sucedem num fluxo caótico e, por isso mesmo, ininteligível. Isso porque um mesmo objeto pode ser frio ou quente; branco e preto; grande ou pequeno; doce e amargo conforme a sua interação com outros corpos. Disso, decorre a influência jônica no idealismo platônico, que, retomando o problema da natureza do ser, outrora colocado pelos primeiros filósofos, encontra aqui um novo contorno.
Os jônios perceberam a aurora secreta, o jorro do devir universal, e disso concluíram a ininterrupta transformação de todas as coisas. Contudo, para estes pensadores, posta desse modo, a realidade não poderia ser tomada enquanto objeto de reflexão, se colocando sempre antes ou depois de qualquer razão, contradizendo o conhecimento, permanecendo ininteligível a todo e qualquer esforço de intelecção. Em suma, conhecer era algo do qual se devia abdicar. Posteriormente, foram os Eleatas os responsáveis por outorgar as condições necessárias à verdadeira ciência, quando concluíram pela total negação da mudança. O ser deveria trazer em si a marca do uno sob o signo da imobilidade, minando qualquer relação possível entre o plano sensível e a ciência1. A inovação da filosofia platônica se produz entre essas duas concepções, como uma espécie de platô capaz de conciliar ambas num mesmo estrato.
Ao considerar a imanência transformadora do perpetuo devir, o filósofo de Estagira viu um único caminho: ora, se tudo é devir, se todas as coisas são sempre passagem, jogo de contrários que se transformam de maneira ininteligível – mudança do quente para o frio; do amargo para o doce; do claro para o escuro –, e sendo elas, por isso mesmo, impassíveis de se tornarem objeto de uma verdadeira ciência, basta que se tome, não as coisas, mas as próprias qualidades como objeto da reflexão. Desse modo, elimina-se o devir, a transformação torna-se apenas a mudança de estados que se sucedem, estados que são imodificáveis, numa estranha fidelidade de si. Platão cria um princípio de identidade, no qual as qualidades, subtraídas da fruição universal, se tornam o verdadeiro objeto do pensamento. E a matéria, reduzida à condição de receptáculo dessas puras qualidades, torna-se um mero vetor, um ponto de convergência desses gêneros imutáveis. Tomando o problema da natureza do ser de um outro modo, desentranhando do seio da matéria um princípio de imobilidade, ao operar uma cesura entre o sensível e as qualidades, Platão foi capaz de explicar a mudança e a multiplicidade, e mesmo de compreender a presença, em um mesmo objeto, de qualidades de natureza divergente. Trata-se da invenção de um novo princípio ordenador para o real, a saber: a Ideia.
Ao contrário, recordai-vos, quando está em si mesma e analisa as coisas por si mesma, sem se valer do corpo, encaminha-se para o que é puro, eterno, imortal, imutável e, por ser da mesma natureza, mantém-se unida a ele tanto quanto lhe é possível. Aqueles descaminhos se interrompem, ela é sempre a mesma, porque está ligada ao que não muda e participa de sua natureza, preservando assim sempre sua identidade e sua maneira de ser. (PLATÃO, 2004, 145)
As ideias são o cerne da filosofia platônica. Em última instância, o verdadeiro objeto do pensamento, e é delas que advém a noção de ser, de harmonia, de verdade. Somente por elas o conhecimento se faz verdadeiro. Mais ainda: é em função das ideias que a mítica platônica se estabelece, delas ergue-se o mundo inteligível, lugar das puras formas, princípio ordenador do sensível, do qual esse toma emprestado a forma. É pela ideia que a erótica platônica se orienta, operando, no centro dos corpos, a divisão entre dois mundos. As Ideias são, no pensamento platônico, as únicas coisas dotadas de Ser, visto que, no plano da physis – o chamado mundo das aparências –, as coisas ou ditos objetos sensíveis não são, estando sempre submetidos aos abalos de uma existência que não cessa de ser outra, apenas aquilo que aparece nos objetos para logo em seguida desvanecer, as ideias, é que podem, de fato, serem consideradas enquanto algo. Delas, os objetos sensíveis são como que recipientes, sendo as ideias a própria essência das coisas, ou como dito no Fédon: “É pela Beleza que todas as coisas são belas e pela Grandeza que todas as coisas são grandes”. Também desse modo, a Ideia é tida como gênero ao mesmo tempo em que essência, pois a qualidade e a quantidade de um objeto sensível depende de sua participação na ideia, assim o belo, como no exemplo, só se pode belo por participar da Beleza. E enquanto um objeto sensível participa de muitas ideias, uma ideia, em detrimento disso, é imutável, não podendo ser outra coisa que não aquilo se é. Arquetípicas, elas são um princípio modelar, do qual o sensível não passa de uma cópia imperfeita.
Ordenadas segundo uma lógica de relações claras, essas conservam entre si uma hierarquia, não comportando nenhum tipo de contradição, não produzindo nenhum tipo de mudança. Dispostas genealogicamente, uma a uma, diferem-se entre si pela generalidade, pela maior quantidade de ser ou ainda pela maior riqueza que trazem ao comportar outras, ou por serem aquelas a lançar mais clareza sobre aquilo de que participam. Constitutivas de um mundo sem devir, lugar da ciência que se opõe ao plano das aparências, são elas objeto e caminho para o pensamento, corrompidas, porém, pela correnteza transformadora do mundo inferior, lugar do não-ser, fonte pulsante das contrariedades, estas, ao se presentificarem no plano sensível, estando na forma de um mero reflexo, se misturam à revelia de qualquer ordem, cabendo à inteligência dissocia-las dos objetos. A prática filosófica, posto isto, é um movimento de ascese no qual o pensador se eleva ao subtrair do fluxo do sensível a imobilidade das puras formas, galgando, ideia a ideia, um além do além, até que possa atingir a mais pura forma, aquela de cuja luz é anteparo e fonte para todas as outras: a ideia de Bem.
Duplamente impelido – de um lado, pela reminiscência, do outro, pelo amor –, Platão diverge dos sofistas, e encontra, na mediação de dois conceitos, um meio termo entre o conhecimento e a ignorância, entre a posse e a privação. Pela reminiscência pode-se, sem que se saiba o que é uma coisa, reconhecer nela a marca do ser. Algo a ser entendido, segundo o platonismo, como uma espécie de memória. A alma, que outrora teve sua plena existência no plano inteligível, contemplando nele as ideias em suas puras formas, ao descer ao plano sensível, lugar da desmesura caótica dos eternos devires, tornando-se prisioneira de um corpo, acaba mantendo, dessa experiência genealógica, um vago continente de lembranças que, então suscitadas pelas sensações, se atualizam, oferecendo-nos um vislumbre desse mundo originário. Do mesmo modo, tal como a reminiscência se coloca para a inteligência, assim o amor se faz para o coração. Sendo um intermediário entre o ter e o abster, o amor nos direciona aos belos objetos, e, da beleza manifesta neles, somos orientados à Beleza em sua pura forma, um gênero ao mesmo tempo em que aspecto do Bem. Assim, o conhecimento parte da sensação, por sua vez limitada pelas intemperanças da matéria, e se conclui na intuição das puras formas, faculdade a que Platão chamou de inteligência pura, que, em suma, é a força motriz das engrenagens de sua dialética.
A dialética platônica, por sua vez, tem a sua operacionalidade num movimento dual: de um lado, a sensação nos fornece os dados de um corpo qualquer, para que esse corpo possa ser desdobrado em múltiplas ideias, do outro, essas ideias obtidas são separadas segundo suas articulações naturais, obedecendo à hierarquia que conservam entre si, para, por fim, delas se obter o uno, a ideia por excelência: o Bem. Dito de outro modo: a dialética platônica estrai o múltiplo da unidade, para, por fim, encontrar, a partir da multiplicidade extraída, a derradeira forma do uno, o uno em sua dimensão ontológica. Tudo se passa como se a filosofia platônica fosse um esforço da razão na visada de um apaziguamento universal, e é neste sentido que a própria razão, a ciência e o conhecimento só se tornam possíveis a partir da imobilidade. O ser só existe sob o sol da imobilidade, é refratário do devir, o ser não pode ser outra coisa que não a si mesmo. Daí, a identidade absoluta de todas as ideias com Deus: o Bem. Pensar, conclui-se, é a busca do imoto. Um desejo de verdade.
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