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A SOMBRA DO IMÓVEL

O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência.

Nem uma culpa como nos fez crer a religião.

O corpo é uma festa.


Eduardo Galeano


A poesia é a mais fascinante

orgia ao alcance do homem.


André Breton


O Homem furtou-se de si, e anda com muitas coisas na cabeça. Deuses povoam sua imaginação sob um céu de anjos que anunciam um futuro glorioso, com suas rodas e suas trombetas a motor tocando o nada infinito. Há uma multidão clamando por paz, lobos engravatados uivam com seus bolsos fartos e sentenciam a vida numa boulevard de sonhos falidos pela falta. O Homem deseja o trono da verdade, quer cheirar esse trono e sentir um brilho na cabeça, ser o rei anódino de sua fábula, e carregar o cajado desse reino através de muitos nomes, sob o céu de muitos deuses. História da filosofia ocidental, cristianismo e razão positiva, quantos nomes para um único desejo de negar? Quanta falta proferida em nome do azul, em nome do futuro, em nome da humanidade nunca antes prometida? Quanta ausência erigida em nome de uma contumaz vontade de verdade.


Esse o segredo por detrás das cortinas da nossa filosofia, essa a verdadeira ferida, a herança secular, a história secreta do nosso cansaço para com a vida. Aprendemos a duvidar do corpo, aprendemos que o caminho do espírito é a derrocada do corpo, e disso decorre a imagem do nosso pensamento. A imagem-ídolo contra a qual apenas poucos se deram a audácia sacrílega e iconoclasta do enfrentamento.


Esquecemos daquilo a que demos nome, esquecemos a consciência, os tratados epistemológicos, os universais de onde construímos a chama dura e imóvel de nossos saberes, e deliramos em nosso esquecimento. Deliramos que tudo isso fosse dimensão incriada, deliramos paraísos de marfim que sempre estiveram lá, castelos de ciência desprovidos de acaso, futuros positivistas caminhando rumo ao horizonte da nossa moral.


De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”, conhecimento em si”; tudo isso pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual

as forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e sem sentido. Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade” (NIETZSCHE, 1998, p. 109).


E por termos esquecido com esse esquecimento, passamos acreditar no insondável, passamos a lamentar a dívida de uma cruz sempre presente e nunca antes tão distante, passamos a fazer ciranda nas trincheiras em que se perde a infância e onde a vida sucumbe sob tratados universais e de eternidade. E por pensarmos nessa origem, por termos feito dela a origem de todas as origens, nossa constante vontade de retorno, por termos feito dela a imagem de um Deus Ideia Uno Imutável, perdemos nossa capacidade de acontecer, nos destituímos de nossa própria fome, de nossa capacidade de produzir mundos no mundo, de derivar do suor de nossas paixões a fagulha de cada mudança.


Disso, a nossa vontade de um paraíso sempre a nossa espera, de um mundo sem devir, de um mundo de verdades sedentárias, de serafins e escravos acossados pela presença de um corpo que se afeta, de um corpo que deriva. Disso, termos deslocado nossos atos do desejo, os deixando à razão de um fora a quem chamamos Deus ou Estado ou Futuro. E tendo esta como alma mater da nossa história, por termos feito de Platão o nosso líder mais secreto, o pai interior de todos os pais, nos acostumamos a essa maneira de existir que engendrou para si uma vida moral e racional e que aplicou no centro do desejo e do pensamento uma vontade de negar que, por vezes, nos colocou de joelhos, investidos em nossa própria servidão.


Mas como o pensamento foi trancafiado às muralhas etéreas do ideal? De que modo o platonismo se inscreve no âmago da cultura do ocidente, se atualizando, das mais diversas formas, em nossas práticas e crenças? Por que o desejo foi crivado por forças de coerção e o corpo, cada vez mais segregado de suas paixões, foi reduzido à uma realidade de segunda ordem, fazendo as vezes de um inimigo para a verdade?


O pensamento em torno do qual se peleja, é a valoração de nossa vida por parte dos sacerdotes ascéticos: esta (juntamente com aquilo a que pertence, “natureza”, “mundo”, toda a esfera do vir a ser e da transitoriedade) é por eles colocada em relação com uma existência inteiramente outra, a qual se opõe, a menos que se volte contra si mesma, que negue a si mesma: neste caso, o caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para essa outra existência. (NIETZSCHE, 1998, p. 106)


Por certo, o esforço de entendimento não passa aqui pelas vias da dialética, tampouco é uma incursão sob as jazidas profundas de uma cronologia, na visada de encontrar uma verdade restauradora, ou motivo primeiro. Ao invés disso, um desejo paira como um olhar afeito à marcha invisível das forças que dão emergência a toda uma série de saberes que, no decurso dos séculos, por vezes diversas, foram produzidos e ressignificados. Tal postura, tributária de um certo jeito de pensar, tendo como alvo o plano de imanência dessas forças, anseia por deslindar os modos como o corpo e o pensamento, implicados sob o julgo de tais poderes, foram descolados de sua potência e soterrados sob os escombros de uma pretensa interioridade. É necessário entender de que maneira corpo e pensamento, então capturados pelo plano de representação de suas próprias verdades, se reduziram à contemplação de formas, reconhecimento de hierarquias racionais e ordens a serem refletidas em sua produção cotidiana, constituindo no âmago da vida uma sensibilidade reativa capaz de represar suas próprias forças de invenção. Posto dessa forma, o exercício que se segue é antes uma cartografia geopolítica das forças que, em seu campo de emergência histórico, estiveram implicadas na formatação desse tipo de existência.


Consoante ao surgimento do Estado Democrático grego, por volta do século VI a.c., molda-se uma maneira singular de pensar e de organizar a vida. Fundamento do que veio a se tornar o pensamento ocidental, dotada de sua própria originalidade, essa nova formação trouxe para a paisagem da existência estratos de saber inéditos, erguendo, da conduta humana, um novo modo de se colocar diante da natureza e da vida. Todavia, ainda que por muito tenha se oposto aos antigos modelos dos mundos primitivo e despótico, essa formação não representava um abandono dos antigos modos de organização do real, ao contrário disso, através do movimento de repetição orientado pelos extratos de discursividade míticos, uma permanência se operou, dos fragmentos de mundos passados que se realocavam no presente numa constante abertura para o porvir, reorientando as forças que outrora deram emergência ao corpo de saberes das antigas civilizações.


De matizes predominantemente micênicas, esses fragmentos de discursividade mítica tinham como orto estruturante o mito de soberania. Algo que diz de um conjunto de práticas diegéticas marcadas por um viés mágico-religioso orientado pelo desejo de um comandante e deus único, o Ánax micênico. Aquele de quem a vontade era fonte e exegese de todo significante, direcionando a produção de conteúdo, sendo a força motriz de onde todo significado de mundo derivaria, a fim de se manifestar nas práticas de representação social a serem dirigidas pelas interpretações dos sacerdotes e escribas.


Esse discurso mítico, difuso na cultura grega, atualiza e repete trações essenciais da mitologia constitutiva da formação social micênica, que exprimia sua soberania através de um poder mágico-religioso, codificando suas relações por um regime de signos cujo valor máximo encarnava a vontade do comandante único, um déspota ou rei divino, o Ánax micênico. Sua vontade constituía-se como significante-mor e centro fixo e motor da cadeia significante, determinando os conteúdos ou significados a serem extraídos e sobrepostos no campo social [...] (FUGANTI, 2008, p. 25)


À revelia de qualquer aparência, a permanência das narrativas míticas no cerne da então nova formação social grega evidencia, ao menos no diz respeito à ideia de racionalidade ali instaurada, a ausência de uma real oposição entre mito e razão. Elemento fulcral no pensamento socrático-platônico, a mitologia é o norte ontogenético da ascensão supraceleste, movimento do espírito sem o qual não se teria condições de acesso à verdade em suas formas superiores. É que Platão produz uma nervura no imo da existência, e separando a alma do corpo, estabelece, entre duas realidades, uma diferença de natureza. De um dos lados, concebe um mundo sem Devir, porto de onde a alma humana traria a marca da sua existência, lugar das puras formas cuja realidade é sempre idêntica a si mesma; de outro, um mundo intempestivo, lugar por excelência das incertezas, plano sensível crivado pelo caos de uma matéria movente que nunca deixa de ser outra em relação a si.


Essa divisão operada por Platão culminará na subordinação do Sensível em relação ao Inteligível. Herdeiro do problema da natureza do ser, Platão postula a impossibilidade de um conhecimento verdadeiro a partir dos sentidos do corpo, fazendo da alma a portadora de todo conhecimento. Ela, ao cair do mundo Inteligível para habitar e dar razão de ser a um corpo no plano material, perdeu o contato com as puras formas inteligíveis, cabendo a si o esforço de se religar com o plano modelar do qual, outrora, fizera parte. Tido como um meio de embotamento para a alma, o sensível, neste sentido, só teria lugar no processo de ascese do espírito como mecanismo disparador da reminiscência, fazendo as vezes de uma ponte mnemônica entre a alma e as ideias puras. Ou seja, sem a aísthesis a reminiscência não seria possível, contudo, após o processo perceptivo, a alma se afastaria da sensação, voltando-se inteira para si, numa espécie de movimento purificador que culminaria na configuração de um estranho tipo de morte antecipada por parte daquele que pensa.


— Assim, de todas essas coisas que acabamos de falar — disse Sócrates —, é evidente que o trabalho do filósofo consiste em se ocupar mais particularmente que os demais homens em afastar sua alma do contato com o corpo [...] Mas o que diremos das aquisições da inteligência? O corpo é ou não é um obstáculo, quando se associa com esta análise? [...] Quando, então — prosseguiu Sócrates —, a alma encontra a verdade? Vimos que enquanto a procura com o corpo é enganada por ele, que a induz ao erro. (PLATÃO, 2004, p. 123)


Operando a partir de dois movimentos, a teoria platônica encontra no mito o princípio-mor de sua seleção, é que, se num primeiro momento, com a dialética, Platão consegue dividir os seres segundos suas definições, tal divisão, ainda genérica demais, não dá conta de separar o puro do impuro. Em suma, é através do mito que o platonismo faz valer seu princípio ontológico, buscando a semelhança absoluta dos sensíveis com o plano modelar das ideias. Por esse caminho, a divisão deixa de ser operada entre dois níveis que divergem de natureza, para se manter num mesmo limiar com o objetivo de discriminar no seio da vida os seres que mais se aproximariam do Bem. Em última instância, Platão fez do mito um princípio de verdade, cuja moral é marcada pelo desejo de unidade, uma busca pelo uno, vontade que reduz todas as imagens da natureza à condição de subordinação em relação a um mundo idealizado. Nostálgico, Platão ressoa em sua mítica as forças de emergência das civilizações despóticas, sua vontade de unidade traz em si as moléculas do déspota divino em sua saudosa soberania. Pelas forças de repetição ativadas pela mitologia, o Ánax micênico viceja por entre as sombras da teoria platônica. Em busca de um critério imutável, Platão encontrou, na mítica de um suposto mundo de ideias confinadas numa imanente tautologia, as condições necessárias para atribuir qualidades, ordenar os desejos e conduzir a razão através de um princípio de semelhança absoluto, coalescente com sua dialética.


A teoria do conhecimento platônica representa o abandono dos valores trágicos que a civilização grega outrora construíra para si. Ao voltar-se para razão sob o anteparo de uma noção universalizante de verdade, Platão afasta o homem da natureza, de suas paixões, da vida manifesta através dos corpos. Delirando um mundo tautológico, quis ordenar a vida a partir de algo que não a dizia respeito e criou um homem moral, determinado por forças estéreis e alheias ao seu próprio ser. No cerne de sua vontade de verdade, ergueu um mundo imóvel, refratário à natureza, e, de sua paranoia, perseguiu a diferença, condenou o simulacro, o devir universal e transformador de cada instante.


A teoria platônica fundou as bases do pensamento ocidental cerceando a vida e criando um tipo de existência orientada pela ficção de um mundo superior. Separando as ideias dos corpos, as essências das coisas, o pensamento do devir condicionou um modo de existência que se opera a partir das alturas, determinado por um fora de si que, sempre à espreita, nunca deixa de julgar o corpo.


Eis, assim, o que constitui de maneira mais profunda as raízes da cultura ocidental: uma vontade de negar a natureza, o corpo e suas paixões – uma profunda desconfiança contra tudo aquilo que muda, contra tudo o que escapa ao controle de uma vontade cansada e delirante. O pensamento platônico não cria; a alma, em si, apenas lembra daquilo que sempre foi, se volta para a ficção ideal e tira de lá os conteúdos a serem direcionados para os corpos, com o intento de reproduzir nas práticas sociais uma ordem alheia e imutável. E se o pensamento não cria, se pensar é antes de mais nada “recordar” – se para “recordar” é preciso, depois da sensação, abandonar o corpo –, a alma que pensa não faz mais do que criar para si a sua própria morte, a sua irrevogável separação da natureza. Pensar, para o platônico, não é se abrir para o inédito; pensar, para o platônico, é voltar para casa, beber numa origem imaginada a única coisa capaz de apaziguar seu espírito fatigado: a imobilidade, a essência primeira de todas as coisas, o Bem intangível de um mundo estático.


A isso Nietzsche deu o nome de Niilismo2, é esse homem cansado a quem Nietzsche chamou de niilista. Sua vontade de verdade se traduz numa vontade de negar, um medo da morte que busca na ficção de um mundo ideal o meio para se livrar da incerteza de um mundo em constante devir. É preferível buscar o nada do que afirmar a tragicidade da vida, a intempestividade criadora de uma natureza sempre em processo. Batizada de muitos nomes ao longo da história ocidental, foi a vontade de negar que deu voz à forma-homem inaugurada por Platão. Essa, atravessa ainda hoje nossas maneiras de agir, pensar e produzir sentidos de mundo. Porque ainda sonhamos com um paraíso cristão onde tudo é paz, porque negamos a natureza em nós e no mundo, ainda espelhamos nossas atitudes numa forma-estado que não cansa de nos dizer o Bom e o Ruim, porque estamos sempre a nos separar daquilo que podemos, e lutando contra os nossos desejos erguemos em nossos sonhos paraísos de consumo que nunca serão celebrados. Fizemos da própria vida um espelho para o nada, a sombra do imóvel, e costuramos com os retalhos de nosso cansaço o vazio infinito.


 
 
 

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