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O escritor paraibano radicado em Vitória da Conquista Caio Resende fala sobre o seu novo livro de poesias, processo criativo, entre outros temas

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Por Jéssica Sande e Rafael Flores, publicado originalmente na revista Gambiarra, em 2017

 

Caio Resende nasceu em Monteiro, na Paraíba e com seis anos de idade mudou-se para Vitória da Conquista, de onde não mais saiu. Aqui cursou cinema na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e trabalha como roteirista desde 2009, atuando em obras como “A tragédia do Tamanduá” e “Sertão de Dentro”, além de possuir parcerias com importantes nomes do cinema nacional, como Geraldo Sarno.

 

Fora do ambiente audiovisual, Caio ainda cria, tendo publicado materiais no âmbito da poesia, a exemplo na Germina – Revista de Literatura & Arte. É um dos bons frutos do encontro de escritores “candeeirocafe”, um “ponto de convergência para aqueles interessados em criação artística”, como descreve.

 

O escritor está colocando na rua o livro “O outro lado da chuva”, que tem lançamento previsto para janeiro de 2018, em Vitória da Conquista. É sobre este e seus processos criativos que Caio conversa com a Revista Gambiarra.

R.G: Nos fale sobre teu livro, a ser publicado em breve. Comecemos pelo título. Existe uma razão para esse título? Existe um tema?
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C.R: Esta obra, creio, é uma totalidade aberta, uma multidão rítmica, de modo que o que chamamos de livro, em sua corporeidade, é, antes de mais nada, qualquer coisa de interdito, de emergencialidade. São múltiplas forças que estão implicadas na experiência do livro, e cada poema é como que um instante móvel dentro de um fluxo que não é de todo consciente. Assim, o livro se constitui a partir de um recorte mais ou menos consciente, que se deu no momento em que fiz a seleção dos poemas, a partir de um circuito lógico erigido por mim ao relacionar os textos que foram escritos numa determinada faixa de tempo – ou no cerne intempestivo das experiências. Só que esse recorte nunca é perfeito, essa relação produz ruídos inaudíveis ao autor. Ruídos esses que considero fundamentais à constituição de um campo de possibilidades para aquilo que pode produzir experiências de leitura vindouras. Porque tão importante (e talvez até mais importante) quanto aquilo que o autor quis dizer, é aquilo que se expressa dentro da obra e que, de alguma maneira, existe independente da vontade de uma autoria. O livro funciona como mãos postas em formato de concha, subtraindo uma porção d’água da corredeira de um rio. O que fica claro nessas mãos é uma fração consciente de rio, cujos movimentos se conservam de maneira molecular. Já o que estou chamando de ruído é aquilo que escapa por entre os dedos do livro e se lança de volta na corredeira. Algo que considero muito importante dentro de uma obra, porque é isso que, segundo o que penso, vai determinar a autonomia da obra em relação ao autor e também a sua sobrevivência. É isso que vai possibilitar a obra “pensar por si mesma”, e é isso que vai produzir a morte fugaz e o constante nascimento da autoria, fazendo dela passagem e retorno, ao converter o autor, depois de escrita a obra, em mais um de seus leitores. Algo que cria um limiar ético de indiscernibilidade, porque isso implica em borrar as fronteiras entre autor e leitor, entre vida e linguagem, é uma confusão de termos que esboroa hierarquias, uma volubilidade entre papéis que na vivência ordinária se encontram plasmados. A obra produz uma experiência de leitura na autoria e uma experiência de autoria em cada leitura, e isso só é possível quando ela, a obra, “pensa por si mesma”, quando possui esses ruídos que seriam o “inconsciente” da obra. O título “O outro lado da chuva”, assim como os quatro capítulos que subdividem o fluxo do livro são os cinco dedos dessa mão, o recorte descontínuo mais ou menos consciente onde cada poema persiste feito um instante rítmico habitando, produzindo e escapando por cada nervura. O livro como proposição, sendo uma mão estendida. Um templo de fogo e tempo sempre em vias de se concluir.

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R.G: Você chamou o livro de proposição, de mão estendida e os poemas de instante móvel, de instante rítmico. Nesse caso, o que seria o rio?
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C.R: O rio é a própria vida. Cada encontro, as experiências, as forças que deram condições de emergência para cada um desses poemas. Você acabou de me perguntar sobre um tema, eu diria que isso é a força multitudinária que atravessa o dínamo sensível do livro. O seu plano de imanência. De modo que o livro não se efetiva ao produzir um discurso sobre um determinado tema, mas sim em seu esforço de não perder o contato com essas forças ancestrais.

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R.G: Como você faz para escrever? Senta e escreve? Sonha com o poema e escreve? Pensa em algo e escreve? O que te inspira?

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C.R: Acredito que a inspiração não seja o ponto de partida. Ela até aparece, mas como resultado de algo anterior. A escrita é, antes, uma disposição para o mundo, uma ética, uma política e uma estética. Uma maneira de apontar nossos sentidos para o real – de se deixar afetar. Nesse sentido, escrever é uma espécie de ritualística da existência, uma forma de chegar uma vez mais ao instante em que estamos, é como atravessar uma via cósmica e descobrir que sempre estivemos do outro lado. Vou deixar mais claro: assim como para a ciência, a precisão é algo muito caro à poesia, mas é necessário entender que a precisão na poesia se dá de uma outra maneira. Enquanto a ciência lida com uma multiplicidade material, numérica e descritiva, eu diria que a poesia, que assim como a ciência necessita e parte da objetividade dos corpos, aponta, em última instância, para uma segunda via, a de uma multiplicidade qualitativa e inextensa, algo da ordem do tempo. São duas tendências, duas dimensões da realidade que se atravessam, que modulam os fluxos de uma existência. Desse modo, os procedimentos em ciência e poesia são diversos entre si. A coisa se opera mais ou menos assim: um cientista, para entender a lua, precisa quantificá-la, dizer sua dimensão ou seu tamanho, sua distância em relação à terra, o seu peso; é preciso para ele saber a composição da lua e, a partir disso, criar uma descrição capaz de explicar o comportamento dela, extrair disso uma função. É assim que a ciência põe a matéria a serviço da humanidade, do espírito humano (para que o capital, logo em seguida, faça disso um meio para a servidão). Já o poeta não descreve a lua, o esforço dele é o de criar o indiscernível entre a experiência e a linguagem. Assim, quando um poeta aponta o dedo para a lua – e entenda por dedo a própria linguagem escritural e por lua o outro, o encontro ou a experiência na qual está inserido o poeta –, o seu dedo se torna a lua. Então dizer poesia não é descrever o céu com palavras, mas fazer das próprias palavras uma experiência do céu. Neste sentido, a poesia se realiza de uma maneira outra em relação à ciência. Se a ciência prescinde e se realiza dentro de um certo tipo de relação – aquela relação que fundou, talvez, o mais conhecido par teórico da história do pensamento ocidental, que é o clássico par Sujeito e Objeto –, a poesia, ou melhor, a minha poesia, é um tipo de atentado contra esse par. Sim, um atentado, porque ela funda o amante, o terceiro ente, que é a indiscernibilidade entre o Eu e o Outro; entre a Linguagem e a Experiência; entre o Dentro e o Fora. A poesia, ou a minha poesia, é uma prática de espiritualização do objeto e de desumanização do sujeito, e é essa prática que funda o que estou chamando de terceiro ente, que nada mais é do que um certo tipo de experiência que nos desloca dos campos de saberes convencionados para a perspectiva da criação de outros mundos, de outras formas de sentir, de outros jeitos de dizer o real naquilo que nos atravessa.

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R.G: Para você, diante da crise em que se encontra o país, a poesia teria algum papel? Se sim, qual seria o papel da poesia na sociedade de agora?

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C.R: Ao contrário do que tentam promover os setores mais conservadores da sociedade, o campo político não se limita apenas à economia. A política está no corpo e no desejo, nos modos como vivemos e sentimos o mundo, a sociedade, a nossa própria cultura. A redução da política à sua esfera utilitária, ao contrário do que se imagina, não visa a recuperação e o fortalecimento do país. A permanente insistência em um tipo de discurso que tende a reduzir as dinâmicas da existência social e política aos ditames de sua esfera econômica – e que tem levado o nosso governo à excrescência de sua infâmia – representa, antes de tudo, uma clara tentativa de depauperar as forças de produção capazes de estender o campo de enfrentamento político, ético e estético para outros limiares da tessitura social. É que tais forças implicam no perigo da constituição de um novo horizonte de práticas e valores, na constituição de uma outra sociedade, no necessário deslocamento dos setores que insistem na conservação de seus estratos a qualquer custo, a fim de manter o funcionamento de uma maquinaria que visa, tão somente, a manutenção dos privilégios de uma minoria abastada. Nesse cenário, surge a evidente necessidade da produção de um olhar longitudinal que possa estender seu alcance para além das frias paredes do oikos, pela possibilidade de produzir uma vida que corra ao largo do sobrevivencialismo de acúmulo ao qual tentam reduzir a vida em sociedade. Por tanto, eu diria que a arte de forma geral e não somente a poesia tem uma importância central, que, contudo, não diz respeito a exercer uma função ou ter um papel no sentido da conservação da sociedade. Não se deve esperar da poesia uma salvação para a sociedade ou para o homem. O que se pode esperar da poesia, diante de uma realidade como a nossa ou diante de qualquer outra realidade, é a danação. Sim, porque ela não está presa à representação de um mundo dado e reproduzido a todo momento pelas estruturas que condicionam a vida em sociedade. Sendo a poesia uma atividade de enfrentamento, ou ao menos quando ela se revela segundo essa face, mais do que reproduzir as condições, códigos e princípios circunscritos em uma época, é na danação, na experiência do fora, no enfrentamento do caos que ela expressa, em sua forma irredutível, a força de não apenas conhecer, mas de fundar o real. A experiência da arte, posto isto, não é senão uma experiência trágica, que nos guia para fora de nós mesmos, é um caminho para a distância de tudo aquilo que já somos. Assim, se posso estabelecer uma importância para a poesia na sociedade é a importância de permitir que a sociedade se afaste de si mesma, que ela seja outra, que se recrie uma e outra vez numa crescente distância de si. Contudo, eu não creio que isso seja um papel. Trata-se de uma natureza se exercendo.

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R.G: Não te parece utópica essa ideia de mundo recriado, de uma outra sociedade?

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C.R: Acredito que é sempre possível pensar desse jeito. Todavia, se assim consideramos, não podemos falar em utopia sem mencionar a nossa própria sociedade. Porque já vivemos numa realidade social utópica, sob o regime de uma utopia nefasta. De maneira que é igualmente utópico esperar dessa estrutura social a emergência de um mundo mais igualitário. Assim, se me é dado escolher entre utopias, busco aquela sob a qual eu consiga respirar. Uma que seja capaz, em alguma medida, de liberar a vida de seus aprisionamentos.

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